Um som de instrumento de sopro vem entrando no diálogo dentro de campo. Os jogadores que se empurravam para ocupar espaço no escanteio param com o conflito confusos com aquela melodia.
A melodia corria solta pelo estacionamento, Ildo procurava pelo carro de onde vinha a buzina. E não achava. E o som , agora atormentador, parecia dominar o ambiente.
Nas cabines do estádio, Pedreirinho narra:
- O lateral esquerdo do Grêmio vai bater o escanteio. Correu pra bola, algo está estranho na área...
E a narração, assim como o jogo somem. A melodia não. Aquele grito de guerra chato, que os colorados cantam quando vencem preenchia o quarto e Ildo abre os olhos.
- Aquele filho da mãe.
E corre para a sacada de seu terraço. Abre a janela e grita:
- Vá se ferrar o Série B.
O som da corneta apenas aumenta. E a melodia não para.
- Te enxerga seu rebaixado, teu time é um lixo!
Corre para a cozinha tomar seu café. A distância da sacada faz a melodia quase sumir. Com o barulho do café sendo preparado praticamente é esquecida. Mas quando menos percebe, Ildo está cantarolando:
- "Somos todos teus seguidores..."
E corre para a janela novamente. Antes de gritar perceber o silêncio. E quando resolve gritar, quase junto consigo aquele pesadelo recomeça.
Corneta voando alta no andar de baixo. A indignação dá espaço para curiosidade, procura no celular e fica ainda mais curioso. A festa da firma tomou conta de sua atenção e se esqueceu da rodada no final de semana. O Inter perdeu pro Brasil de Pelotas. O Grêmio também, pro Juventude. Mas o Inter perdeu e isso não permite festa,o Inter perdeu.
O que o vizinho está pensando, pensou Ildo. O Inter perdeu, e um jogo de gauchão ainda na primeira fase. Não há razões para festa tão alta no domingo de feriadão. E de manhã.
De manhã? Olhou o relógio , e se corrigiu. Festa as 15:00 de domingo, colorado fazendo festa depois que perdeu. Não é admissível isso. E decidiu ir a forra.
Abriu a porta da sacada, invadiu o terraço. Entendeu o silêncio da corneta e uma conversa de crianças como boa oportunidade para dar uma lição na festa colorada dos vizinhos. Não se conteve e mandou:
- O Inter perdeu seus babacas! O Inter perdeu! Acabou a festa, teu time é um lixo! 1x0 pro Brasil de Pelotas. No Gauchão. Perderam!
O desabafo deu espaço novamente ao silêncio. E a conversa das crianças virou gargalhadas.
Em poucos segundos a campainha tocou. Não o seu interfone, a campainha. Sabia que seria o vizinho do apartamento da corneta, das crianças e da festa colorada.
Abriu a porta. O vizinho do apartamento de baixo, e mais dois rapazes, um com cara de que não queria estar ali e outro de camiseta do Inter e bem mais jovem que todos na cena era o mais interessado.
- O palhaço que veio animar a festa do caçula toca corneta e quando soube que o guri é colorado passou a tocar a melodia. O prédio permite esse tipo de manifestação as 15:00 de domingo. Mas eu já pedi que ele encerre seu expediente. Mesmo que as crianças estivessem gostando dele.
Não foi uma conversa. Foi um comunicado. Assim que encerrou virou as costas e antes que Ildo fechasse a porta ainda concluiu:
- Time lixo é o teu , seu filho da mãe. E na próxima vez que tu gritar com meu filho e os amigos dele vou oferecer queixa no condomínio. Todo o teu escândalo está gravado na câmera de segurança. Mas a gente te entende, perder no Jaconi é algo a se lamentar mesmo. O que confirma, teu time é um lixo.
Se virou e voltou pra festa da piazada. Ildo ainda sem fechar a porta ouviu o hino do Inter tocando no celular do guri com a cara repleta de acnes lhe fitando com malícia e deboche. Ainda próximo a sua porta.
- Agora deixa ele em paz Nilson.
-Nilson?
-Grenal do século.
Portas se fecharam. O palhaço tocou ainda mais cinco minutos da melodia que acordou Ildo e para encerrar uma versão quase desorganizada do hino do Inter antes que fosse embora.
Ildo ,então tomando seu café , sentia a ressaca terrível da noite anterior. A festa da firma foi um sucesso, mas agora pesava em sua cabeça. Mas isso era apenas perfumaria na sua tarde de domingo.
- esse colorado me paga.